terça-feira, outubro 30, 2007



Imagem: Lady Godiva, de John Collier (1850-1934), pintor pré-rafaelista inglês

O PULO DO AMANTE

"Teu corpo claro e perfeito - teu corpo de maravilha! Quero possuí-la no leito estreito da redondilha". (Manuel Bandeira)

Luiz Alberto Machado

Certa tarde em que o dia acende a vida, ela poderosa como sempre e reluzindo a sua saltitante vitalidade, se passara por Safo, fazendo-me seu Faonte. Pedira-me manhosamente com aquele tom de quem precisa ser atendida plenamente para que buscasse o fruto da goiabeira. Recolhi a escada e, de grau em grau, perguntava-lhe por qual.
- Essa?
- Não, aquela.
- Qual? Essa?
- Não, aquela lá em cima.
De lá via o seu dedo apontado para o meu abismo: o promontório de Leocádia e o mar.
Uma vertigem e despenquei, se não morresse, ficaria curado do amor. Não morri nem me curei.
Quando dei por mim, sabia sequer onde estava.
Sei que ali estavam ao meu redor as mulheres que usavam uma faixa larga com casca batida, com uma ponta que passava entre as pernas, caindo sobre o ventre, além de uma saia curta, enrolando-se numa capa de casca de árvore. Usavam os cabelos presos num coque comparada a uma barbatana de peixe. Pareciam-me poliândricas, algumas de ancas esgalgas, outras voluptuosas e recheadas de sedução.
Requestado por elas que se ofereciam a mim sem pudor nenhum, em troca exigiam a exposição de meu membro, pinicado ao leve toque de suas mãos aveludadas e entregava-me aos seus bulícios.
O ritmo era marcado pela dançarina que saltava sobre uma laje fina de pedra, que recobria uma fossa na qual estava colocada uma grande cabaça que servia de caixa de ressonância. Este era, com o búzio marinho, o único instrumento musical. E a dança consistia em movimentos graciosos e medidos. Luxúria pura. As moças mostravam-me as coxas roliças por causa da sua túnica curta, elas se exercitavam no corredor olímpico. E eu, naquele meio, parecia mais que era Zeus que descia do seu pedestal para se assemelhar estranhamente aos homens, como um alegre galanteador que não pode resistir a uma linda mulher, deusa ou mortal, pouco importando qual. Esse desfile de aventuras garante a minha descendência: a bela Métis, primeiro, a quem devotara meu juvenil arrazoado; depois Atena, deusa da razão, saída então toda armada da cabeça do seu pai, agraciando meus quereres. Posteriormente a tia, a respeitável Têmis, deusa da Justiça, e as três Mouras encarregadas de seguir atentamente o desenrolar da existência de cada um dos humanos: Cloto, fiando na sua roca o curso da vida; Laquésis distribuindo a cada um a sorte fixada pelo destino; finalmente Átropos, a implacável, cortando de uma vez o curso da vida, quando chegava o momento. Depois veio a sua irmã, Deméter, protetora das colheitas, particular do seu leito, loucamente lúbrica para meu desespero. Logo após Mnemósine, a Memória, que nunca se esquecera de mim; e, finalmente, a bela Afrodite que só podia gerar criaturas perfeitas com sua beleza estonteante.
Ah, como eu me empanzinara com deleites além da conta do meu merecimento. E elas, outras e semideusas, se reuniram à volta da taça de Deméter para os ritos da fertilidade das Tesmoforias, dos quais os homens são excluídos. Eu seria, portanto, a exceção.
Uma animação fora do comum dá então vida aos gineceus, ressoando risos abafados, gritos e corridas. E eu mais ainda explodindo de curiosidades. As mulheres prepararam-se durante muito tempo, eu que nem me dava conta. Quatro meses antes, soubera, elas enterraram os objetos sagrados: leitões, figurinhas de argila representando órgãos sexuais, para que a terra nutriente lhes comunicasse a sua fertilidade. E que nos dias anteriores elas se purificaram abstendo-se de se aproximarem dos homens.
É hoje! Descabeladas, correram para o jardim para desenterrar os símbolos que lhes vão assegurar fecundidade. Depois de um dia de jejum, elas acolheram as promessas de Deméter, flagelando com ramos verdes, roendo sementes de romã e ruminando, com os órgãos femininos de argila, em cenas íntimas acompanhadas de piadas obscenas que fariam corar qualquer cristão. Vieram as orações que as mulheres dirigiam à Deméter e sua filha Core, para que elas protegessem os grãos que germinariam a terra.
O corpo é o seu bem próprio e elas fazem a greve de amor para conseguir que os maridos assinem a paz, a exemplo das atenienses. Nossa! Soubera que desfaleciam só com a idéia de se privar dos prazeres do amor. Tudo menos isso. E eu entregue à sua liturgia. Somos homens que viramos cigarras por sermos cativados e embevecidos pelas musas. Por elas esquecemos de beber e comer, por venerarmos Terpsicores, Eratos, Calíopes, Urânias, Lisístratas, como no mito da cigarra de Fedro. E mesmo que escrevamos nosso diário de Kierkegaard, seremos vulneráveis e fustigados pelos golpes sexuais delas. Como nas explicações de Descartes: as paixões passam por nossos órgãos. Nós sofremos a atribulação da carne. Não diria que ela, a mulher, seria a causa ordinária do pecado: "como renegar quem me criou, quem me distinguiu dos animais da terra?", dissera Santo Agostinho. Nunca diria, ao contrário, saberia, com a minha simples inutilidade, entregar-lhe meu tributo: amando. Este sim, o significado do imoderado júbilo de sabê-la a fonte que jorra a vida eterna. E como conter a tentação? Digo: é melhor trepar que viver abrasado. Quem teria então o poder de controlar manifestação da espontaneidade biológica? Como ter aversão? Isto é pecaminoso, ou será a abstinência de um celibatário em sua vida monástica? Eu pelo menos nunca me faria assim. Então, como renunciar se Deus nos dissera? Como admitir total castidade como um casamento monógamo com a alma de Deus? Será que ele queria isso? a criatura pelo criador? Deus quereria o meu sacrifício? Mutilar a oferenda? O pai tribal? Qual seria o sexo santo? Ele que fique lá, eu quero a integridade do corpo e da mente e a mulher é a fonte. Ah! Ela é a maior das maravilhas que vai do menacme, iniciando sua maturidade sexual, principesca, a sua sedução, até o climatério, onde a senilidade já tenha provado quantas delícias. Nela quero nidificar, naquele corpo de boeing cáustico, uma entre as seis mil estrelas visíveis, potranca, centaura, da cintura delgada, da estatura iridescente, dotada de talhe soberbo e magnífico, fina pele; ela no primeiro plano de qualquer perspectiva, tornando-se, claro, a minha epífita.
Ah! O seu encanto, os seus seios arrebitados, os olhos de gazela, leoa no seu habitat, brilho de supernova na nebulosa de Andrômeda, que a gente caça como a uma garça-caranguejeira.
Ah! Os olhos manhosamente ocultados pelas pálpebras nos sonhos inquietantes, enquanto os ductos das mamas provocantes instigam minha saliva com seu ornamento exuberante, esculpida deliciosamente, impudente, elegante, esbelta, seus contornos, sua leve silhueta, a altiva expressão gravitando na minha direção, a magnetizar-me como estrela de primeira grandeza, como se fôssemos limalha de ferro atraído pela sua irradiação e a gente desprevenido sem isolante algum.
Ah! E quando toca pelo sentido cinestésico, o tato, descobrindo-me esconderijos.
Ah! Bebo a água do seu corpo, roço-lhe os pelos pubianos, a sua floresta amazônica, a sua carne com a pele da terra roxa, o seu Potosí inexplorado, a sua trilha de Piaburu, o seu monte de Vênus, os grandes lábios tumefeitos da sua vulva, as carpas atlânticas, o hímen, as gônadas, o clitóris, o seu atol, a sua caverna, o colo opulento, a fenda vulvar, o vestíbulo da vagina, a rima do pudendo, o prepúcio do clitóris, o seu gineceu, a sua cavidade pélvica, o seu pistilo, carúnculas himenais, carina uretral, situados ventrais, sífise púbica, pregas igüinais, com perfume de rosas búlgaras em suas profundezas insondáveis.
Ah! E em decúbito dorsal, a ver-lhe a coluna vertebral, a minha língua dúctil no tubérculo genital, sentindo a quentura do tecido epitelial do seu aparelho urinário, a seiva do seu efeito piezelétrico, pelo estreito de suas pernas, o seu estreito de Gibraltar, o seu estreito de Magalhães.
Ah! O falo e a minha bolsa escrotal, ela e o palato detonador friccionando-me até a minha ereção, a língua de camaleoa ateando-me fogo, a espoleta da bomba do prazer, faísca na minha nitroglicerina, a minha transpiração - eu sou um animal instintóide e o meu istmo unindo-me a ela por seu paladar.
Ah! A nossa carga pelo atrito dos nossos corpos, alcançando voltagem em nível crítico, expelindo faíscas pelos calores aquecidos, corrente fluindo acusada por um miliamperímetro, cem graus Celsius, trezentos e setenta e três graus Kelvin, numa paixão radioativa exalando letal 200 mil miliroentgen por hora, fissível em altíssimos elétrons-volts causando reação em cadeia por todos os poros, veias, artérias, e o meu cromossomo na sua gônada, a minha estrutura Wolf no seu tubo Muller.
Ah! O seu cio, a libido, o orgasmo, a nossa taquipnéia, nossa taquicardia, sacudindo minhas coronárias, eu ficando em danada ebulição no epicentro do nosso terremoto, as nossas ondas sísmicas, onidericionalmente no geóide de nossos corpos.
Ah! Eu gratificado pela doação dos seus atributos, atraído pelos seus mamilos, alisando-lhe o músculo sartório, a minha barba mal feita passando pelo seu esplênio e ela arrepiando-se, asfixiando-me pela imersão nas águas do seu corpo.
Ah! Belo rosto de Renée Zellweger, num cicio apaixonante, eu rijo, todo o viço célere, os seus passos de cigana, o corpo esguio, eu emocionado canastrão em seu ar pujante, que artesão maior? Que artífice genial? E ela viceja com a peçonha que me enlouquece na boca doce de meiguice, imolando-me com os seus olhos de tâmaras afetuosas, sublevando os meus sentidos o seu calor abrasivo debruçada sobre o meu corpo.
Ah! E como Adão dissera: "esta mulher tentou-me e eu comi a maçã!" Quem não se inquietaria. Mais, "não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma auxiliadora que lhe seja idônea". Está na Gênesis 2,18. E ainda mais: "Sedes fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeite-a", Gênesis 1,28. E eu e o meu coração em hasta pública, penhorado em nome da ambição, arrematado para a escravaria da paixão. Enquanto isso eu canto a minha canção idônea como um ascritício, algumas vezes abstrusa, aliada aos litisconsortes da justiça. Eu sei, uns nascem para pensar em engolir espaços, territórios, acumular posses, pisar, desbravar lesivo, viagens siderais, cruzar os sete mares, esburacar a terra e por aí vai. Outros adoram coisas fora de si, invenções, superstições, dogmas, fiéis depositários de uma antropomorfia sacralizada, ortodoxias alienadas das necessidades e anseios humanos. Ora. Eu não, eu amo a mulher como a chuva que vai fertilizando a terra. A semente no solo. O céu, a terra, o universo. A cópula natural. E durante o inverno dorme a lagarta. Quando acorda, a borboleta anima a vida.

© Luiz Alberto Machado. Direitos reservados.

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